A abstrativização do controle concreto de constitucionalidade é um fenômeno muito em voga na moderna doutrina constitucional e na jurisprudência brasileira, e está relacionada a mudanças no sistema de controle de constitucionalidade das leis no direito brasileiro. Tal fenômeno também é conhecido como objetivação do recurso extraordinário e, nas palavras do ministro Gilmar Mendes, significa que o referido recurso “deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesse das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva. (...) O processo entre as partes, trazido à Corte via recurso extraordinário, deve ser visto apenas como pressuposto para uma atividade jurisdicional que transcende os interesses subjetivos”.
Isso que dizer que o recurso extraordinário tem passado por diversas modificações, seja na jurisprudência do STF, seja pela própria alteração legislativa, que lhe conferem um caráter nitidamente objetivo, em que as regras geralmente aplicáveis ao controle concentrado de constitucionalidade são aplicadas ao controle difuso, visando, com isso, a efetividade das decisões proferidas pela Suprema Corte. Como muito bem ressaltou a Ministra Ellen Gracie, no julgamento do AI nº 375.011, “o Supremo Tribunal Federal, em recentes julgamentos, vem dando mostras de que o papel do recurso extraordinário na jurisdição constitucional está em processo de redefinição, de modo a conferir maior efetividade às decisões”. Verifica-se, assim, um movimento muito forte do Supremo visando uma aproximação entre o controle de constitucionalidade difuso e concentrado, principalmente no que concerne aos seus efeitos.
Algumas decisões do STF inovam justamente por aplicar no julgamento de recurso extraordinário as regras, que, em tese, somente seriam aplicadas ao controle abstrato de constitucionalidade. Vejamos alguns exemplos retirados das lições do ilustre professor Fredie Didier (in “Curso de Direito Processual Civil”. Vol.03. Salvador: Juspodivm, 2007, pp.275/279)
a) a dispensa no preenchimento do requisito do prequestionamento de um recurso extraordinário, visando dar efetividade ao posicionamento do STF sobre questão constitucional no AI 375.011;
b) o TSE editou resolução que conferiu efeitos erga omnes a decisão do STF no julgamento do RE 197.917SP que interpretou o art. 29, IV, da CF, que trata da fixação do número de vereadores em cada município;
c) no RE 416827SC admitiu-se a sustentação oral de amicus curiae, figura típica do controle concentrado de constitucionalidade;
d) no julgamento do HC n. 82.959, não obstante tenha considerado inconstitucional o § 1 do art. 2 da Lei n.8.07290, aplicou-se o art. 27 da Lei n. 9.86899 para dar eficácia não-retroativa (ex nunc) a decisão, quer dizer, houve modulação dos efeitos da decisão, previsto em lei apenas para os casos de controle concentrado;
e) No RE 298.694 decidiu-se admitir a possibilidade de o STF julgar o recurso extraordinário com base em fundamento diverso daqueles enfrentado elo tribunal recorrido, permitindo-se a causa de pedir é aberta, assim como acontece nas ações de controle concentrado de constitucionalidade, sendo o RE decidido com base em outro fundamento;
Também na legislação encontramos alguns exemplos da objetivação do controle difuso de constitucionalidade. Trazemos à baila, mais uma vez, os casos citados por Fredie Didier no Manual de Processo Civil acima citado:
a) o procedimento do recurso extraordinário interposto no âmbito dos Juizados Especais Federais, previsto no art. 14, §§ 4º e 9º, da Lei n. 10.259/2001 e § 5º do art. 321 do RISTF;
b) o art. 103-A da CF (EC 45/2004) consagrou a súmula vinculante em matéria constitucional, que será editada após reiteradas decisões, tomadas em controle difuso de constitucionalidade;
c) Também por intermédio da EC 45/2004 acrescentou o parágrafo terceiro ao art. 102 da Constituição Federal, criando o instituto da Repercussão Geral nos Recursos Extraordinários, que foi posteriormente regulamentado pela Lei 11.418/2006 e pelos artigos 543-A e 543-B do Código de Processo Civil. Assim, o recurso extraordinário passa a ter mais um requisito específico de admissibilidade, qual seja, deverá ser demonstrado, em preliminar, que há discussão sobre questões relevantes do ponto de vista jurídico, político ou social, que ultrapassem interesses subjetivos da causa;
d) O § 3º do art. 475 do CPC dispensa o reexame necessário quando a sentença se baseia em posicionamento tomado pelo pleno do STF, mesmo que não oriundo de processos não-objetivos.
Vale lembrar, contudo, que se tem exigido alguns requisitos para que as regras do controle abstrato sejam aplicadas ao controle difuso, quais sejam: a) decisão do Tribunal Pleno, órgão competente para o julgamento na via concentrada; b) discussão abstrata da matéria (progressão de regime em crimes hediondos); c) abstenção dos ingredientes ou características personalíssimas do caso concreto; d) delimitação dos efeitos para os casos futuros – teria efeito erga omnes e vinculante, principalmente em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário.
Importante decisão do Ministro Gilmar Mendes na Rcl 4335/AC, diretamente relacionada ao tema em estudo, reconheceu que a regra do art. 52, X, da CF sofreu uma mutação constitucional, no sentido de que as decisões proferidas pelo Plenário do STF, em sede de controle difuso, não mais precisam de resolução do Senado Federal para terem efeito erga omnes. Nesse sentido vejamos notícia extraída do Informativo do STF de n. 454/2007:
“Reclamação: Cabimento e Senado Federal no Controle de Constitucionalidade - 4
Considerou o relator que, em razão disso, bem como da multiplicação de decisões dotadas de eficácia geral e do advento da Lei 9.882/99, alterou-se de forma radical a concepção que dominava sobre a divisão de poderes, tornando comum no sistema a decisão com eficácia geral, que era excepcional sob a EC 16/65 e a CF 67/69. Salientou serem inevitáveis, portanto, as reinterpretações dos institutos vinculados ao controle incidental de inconstitucionalidade, notadamente o da exigência da maioria absoluta para declaração de inconstitucionalidade e o da suspensão de execução da lei pelo Senado Federal. Reputou ser legítimo entender que, atualmente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado há de ter simples efeito de publicidade, ou seja, se o STF, em sede de controle incidental, declarar, definitivamente, que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação àquela Casa legislativa para que publique a decisão no Diário do Congresso. Concluiu, assim, que as decisões proferidas pelo juízo reclamado desrespeitaram a eficácia erga omnes que deve ser atribuída à decisão do STF no HC 82959/SP. Após, pediu vista o Min. Eros Grau. Rcl 4335/AC, rel. Min. Gilmar Mendes, 1º.2.2007. (Rcl-4335)”
Tal entendimento foi alvo de severas críticas por parte de alguns doutrinadores que afirmam que caso tal argumento venha a prevalecer na jurisprudência do Supremo haverá uma nova concepção do sistema de controle de constitucionalidade pátrio, além de risco de quebra do pacto federativo, ocorrendo uma ruptura paradigmática no plano da jurisdição constitucional. Registre que, por ora, o entendimento do Ministro Gilmar Mendes não prevalece na Suprema Corte.
Ante o exposto, conclui-se presente trabalho destacando-se que a abstrativização do controle difuso de constitucionalidade tem o grande mérito de desafogar o Poder Judiciário, especificamente o STF, uma vez que o afasta das causas que atingem interesses meramente privados, restringindo as demandas submetidas à sua apreciação, tendo em vista que o recurso extraordinário tem por precípua finalidade a defesa da ordem constitucional. No que concerne à dispensa da manifestação do Senado Federal para de que as decisões em RE produzam efeitos erga ornmes (uma nova leitura do art. 52, X, da CF) tem algum sentido as críticas feitas pela doutrina por dois simples motivos. Primeiro porque, não há como negar que se retira do controle difuso de constitucionalidade sua legitimidade democrática (participação de representantes eleitos pelos cidadãos). Segundo porque, com a instituição da súmula vinculante no nosso ordenamento jurídico tem-se o mesmo efeito pretendido com a mutação do art. 52, inciso X, da Constituição Federal.
Analista processual do MPF, formada em direito pela UESC - Universidade Estadual de Santa Cruz- Ilhéus/BA.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CASTRO, Anna Karina Lopes de. A abstrativização do controle difuso de constitucionalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 out 2008, 14:48. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /15140/a-abstrativizacao-do-controle-difuso-de-constitucionalidade. Acesso em: 28 dez 2024.
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